Desse março tão sem fim, tão sem salário e com tantas contas a pagar, só penso num dia a ser destacado – particularmente triste e alegre. O dia 17. Alegre porque duas das pessoas mais talentosas e complexas da cultura brasileira aniversariavam; triste porque nenhuma delas, hoje, vive. Elis Regina, que não compunha um verso sequer, mas que soube tornar-se dona das músicas que cantava, seria ainda, não fosse tão dolorida, uma garota, levando em conta que Gil continua uma espoleta, Caetano, pleno e o Chico sempre põe nervoso o coração de muita moça.
Mas do aniversário da Pimentinha, souberam dar conta inúmeros jornais e vários canais de televisão. Sobre o Antônio Maria, o outro aniversariante, não vi quem falasse dele. E ele, se não tivesse partido em 1964, estaria completando... Enfim, uma idade bastante impossível para alguém que era tão cardisplicente, como costumava definir-se.
Leio Antônio Maria quase todos os dias no trem, indo para o trabalho. E, se não houvesse uma voz que vem do alto-falante me avisando sempre onde descer, desceria sempre longe do serviço. Aí sabe-se lá com que paciência o pessoal me ouviria dizer: “Desculpem-me, foi o Antônio Maria... de novo”.
Antônio Maria foi um fenômeno. Dos maiores cronistas do país. Medindo nada menos que o mesmo tamanho de um grande poeta. E há quem diga que a crônica é um gênero literário menor. Num gênero literário menor, não é dado ler algo como “A humanidade está necessitando, urgentemente, de afeto e milagre. Mas não sabe onde estão as mãos, nem os deuses. E, quando souber, vão achar que as mãos e os deuses são de mentira”; ou ainda: “Amanhece, em Copacabana, e estamos todos cansados. Todos, no mesmo banco de praia. Todos, que somos eu, meus olhos, meus braços e minhas pernas, meu pensamento e minha vontade. O coração, se não está vazio, sobra lugar que não acaba mais. Ah, que coisa insuportável a lucidez das pessoas fatigadas!”
Conta-se também (e é verdade) que Antônio Maria foi narrador esportivo e escreveu alguns dos sambas que estão sempre nas bocas, mas que a maioria desconhece o autor. Compôs, entre tantas letras, a letra da (quase) famosa Ninguém me ama: “Ninguém me ama, ninguém me quer/ Ninguém me chama de meu amor/ A vida passa, e eu sem ninguém/ E quem me abraça não me quer bem”.
Gosto mais do Antônio Maria do que sei sobre ele. Sei que era gordo, amigo do pileque e mulherengo – Mariinha que o diga. Também era, ao menos os textos dele assim o mostravam, um sujeito apaixonado e melancólico. E um colega me contou uma história muito bem-humorada sobre esse pernambucano que viveu no Rio. Um dia o Antônio Maria ligou para o também escritor Carlos Heitor Cony e eles tiveram um diálogo parecido com este:
“Cony, você nem sabe o que me aconteceu!”
“O quê, Maria?”
“Encontrei num voo moça muito bonita lendo o seu Matéria de memórias.”
“É mesmo? E aí?”, perguntou, intrigado, o outro.
“Aí me apresentei a ela dizendo que eu era você.”
“Não!!”, apavorou-se o amigo. “E aí?”
“Aí nós começamos a conversar sobre mim, quer dizer, sobre você.”
Não sou muito bom em fazer diálogos, então, para encurtar, o Maria falou, para um atônito Cony, que havia levado a mulher a um motel. E arrematou: “E o pior é que VOCÊ brochou!”
Que mais dizer do Antônio Maria? Só dá pra dizer – repetir – que ele era um fenômeno. Ele, a Elis e o Rubem Braga, que não sei quando faz aniversário.
Por Rodriguez