domingo, 6 de janeiro de 2013

Tudo o que temos é a vida

Tudo o que temos, enquanto vivemos, é a vida;
Se você não vive durante sua vida, você é um pedaço de merda.
E trabalho é vida, e vida é vivida no trabalho
a menos que você seja um escravo do salário.
Enquanto um escravo do salário trabalha, deixa a vida de lado
e fica lá, um pedaço de merda.
Os homens deveriam recusar-se a ser sem vida no trabalho.
Homens deveriam recusar-se a ser montes de assalariados de merda.
Homens deveriam recusar-se a trabalhar, como escravos assalariados.
Os homens deveriam exigir trabalhar para si mesmos, por si mesmos,
e investir sua vida nisso.
Pois se um homem não tem vida no seu trabalho,
ele é basicamente um monte de merda.

D. H Lawrence

terça-feira, 11 de setembro de 2012

FOTOGRAFIA DO 11 DE SETEMBRO

Wislawa Szymborska

Pularam dos andares em chamas —
um, dois, alguns outros,
acima, abaixo.
A fotografia os manteve em vida,
e agora os preserva
acima da terra rumo à terra.
Ainda estão completos,
cada um com seu próprio rosto
e sangue bem guardado.
Há tempo suficiente
para cabelos voarem,
para chaves e moedas
caírem dos bolsos.
Permanecem nos domínios do ar,
na esfera de lugares
que acabam de se abrir.
Só posso fazer duas coisas por eles —
descrever este voo
e não acrescentar o último verso

sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Nada duas vezes

Duas vezes nada acontece
nem acontecerá. E assim sendo,
nascemos sem prática
e sem rotina vamos morrendo.

Nesta escola que é o mundo,
mesmo os piores
nunca repetirão
nenhum inverno, nenhum verão.

Os dias não podem ser repetidos,
não há duas noites iguais,
não há beijos parecidos,
não se troca o mesmo olhar.

Ontem, o teu nome
em voz alta pronunciado
foi como se uma rosa
me tivessem atirado.

Hoje, ao teu lado,
voltei a cara para a parede.
Rosa? O que é uma rosa?
Será flor? Talvez rocha?

Porque tu, ó má hora,
me trazes a vã tristeza?
Se és, tens de passar.
Passarás - e daí a tua beleza.

Abraçados, enlevados,
tentaremos vencer a mágoa,
mesmo sendo diferentes
como duas gotas de água.

Wisława Szymborska

sábado, 5 de maio de 2012

Cântico Negro


"Vem por aqui" - dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...

Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura!
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
- Sei que não vou por aí!

José Régio

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

The manifest pangaré

1) Para ser um pangaré - é necessário andar do meio para trás, eventualmente, um pangaré dá um trote mais largo, mas é por uma razão desconhecida, talvez, alguma faísca tenha acendido, então, ele troteia mais rápido, breve, para em seguida andar no seu costumeiro ritmo.

2) A origem do nome – Pan que significa todo, toda, tudo (vários) e garé pequena variação de galé ( navios em que alguns eram condenados a remar, trabalhos forçados) , resumindo: vários no mesmo barco. É dito que a multiplicidade enriquece, é provável. Acontece que o pangaré talvez se confunda com esta multiplicidade. Façamos a seguinte comparação: imaginemos alguém com um livro e outro com muitos, ambos têm que lerem, pois o tempo urge, e é aí que o pangaré vai se demorar para escolher o livro ou escolher o caminho. Sosseguemos os espíritos dialéticos. Quem tem somente um livro ou um caminho poderá se entediar? Sem dúvida, mas esse será o único livro e o único caminho, e não há perigo de se perder. Quanto ao pangaré? Sabe-se lá com qual livro esta e que caminho tomou ou vai tomar, não adianta virem de Antonio Machado, pois é possível que o pangaré ainda não tenha se movimentado.

3) O pangaré e as tarefas – O pangaré começará pelo mais fácil, né? Errado. O pangaré não começará por nenhuma. Não associemos à preguiça, é o Pan. A multiplicidade do seu ser gera uma atrapalhação, por fim, ele começará todas as tarefas juntas, bem, o resultado será bastante diverso: entre o médio e ruim. Tendendo mais para o último.

4) O pangaré e atrapalhação – Observem que no item três a palavra atrapalhação. Poderíamos pensar que é pela origem do seu ser, mas não é. O pangaré necessita de duas ou três coisas, mas o mundo oferece demais, e isso confunde um pangaré.

5) O pangaré e as mulheres – Percebam que as ideias vão se encaixando. O mundo oferece mais do que se precisa, há excedente. Sabemos que o pangaré se confunde. Não sabemos se isso já havia sido dito, o pangaré é tímido, e como em quase todas as espécies a iniciativa é do macho, o pangaré terá suas dificuldades para se relacionar. Mas há pesquisas provando que o pangaré não é um caso perdido.

6) O pangaré e o seu círculo - O pangaré não anda em grandes grupos. Andam em dois, três ou quatro, e muitas vezes são vistos até sozinhos.

Seis itens dão uma idéia de inconcluso, e está mesmo. Um pangaré não faz grandes projeções (um parêntesis: certa feita soube-se de um que separou sessenta livros para serem lidos em dois meses, sendo que o segundo mês era fevereiro, é uma longa história), talvez, ainda venham: o pangaré e o futebol, o pangaré e a filosofia, o pangaré e a educação, o pangaré e o amor, o pangaré e o dinheiro.

Gula

Tomo satisfação de Deus.
Tenho fome.
Há tantas mulheres
para serem amadas,
há tantos livros
para serem lidos
e há tantos amigos por encontrar,
que (só) está vida não satisfaz,
não satisfaz,
a gula que sentem os poetas.

Jorge Fróes

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Greve dos professores do estado do RS

LEIAM ATENTAMENTE E ESCOLHAM UMA DAS DUAS FRASES ABAIXO:

- OS PROFESSORES DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL ESTÃO EM GREVE!

OU

- OS PROFESSORES DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL ESTAMOS EM GREVE!

SE TU, PROFESSOR DO ESTADO, OPTASTE PELA PRIMEIRA FRASE, FICA SABENDO QUE A CONCORDÂNCIA VERBAL EXISTENTE ALI ESTÁ OK. O ÚNICO PROBLEMA É QUE TU, PROFESSOR DO ESTADO, NÃO ESTÁS TOMANDO NENHUMA POSIÇÃO, ESTÁS ALHEIO.

AO PASSO QUE SE TU, PROFESSOR DO ESTADO, OPTASTE PELA SEGUNDA FRASE, ISSO QUER DIZER DUAS COISAS: QUE SABES QUE EXISTE CONCORDÂNCIA VERBAL IDEOLÓGICA (E ELA NÃO É INCORRETA) E QUE, MAIS QUE ISSO, ESTÁS TE POSICIONANDO SOBRE UMA QUESTÃO IMPORTANTE, NÃO ÉS ALIENADO!

SE TU, PROFESSOR DO ESTADO, OPTASTE PELA PRIMEIRA, COMO FARÁS QUANDO, POR CAUSA DA GREVE, TEU POUCO SALÁRIO VIER COM UM AUMENTO (POUCO TAMBÉM)? IRÁS À MANICURE MAIS VEZES? MUDARÁS O CELULAR PARA UM DE MAIS FUNÇÕES?

SE TU, PROFESSOR DO ESTADO, OPTASTE PELA PRIMEIRA POR NÃO QUERER TRABALHAR EM JANEIRO, COMO, NO ANO QUE VEM, OLHARÁS TEU COLEGA QUE LUTOU PELA MESMA CATEGORIA À QUE PERTENCES? E QUE TRABALHOU EM JANEIRO E ESTÁ MENOS BRONZEADO QUE TU?

TU, PROFESSOR DO ESTADO, OLHARÁS PARA TEU COLEGA QUE FEZ GREVE E O ACHARÁ UM OTÁRIO? OU DIRÁS PARA TI MESMO “CADA UM COM SEUS PROBLEMAS!”?

SE TU, PROFESSOR DO ESTADO, ESCOLHESTE A PRIMEIRA FRASE, LAMENTAMOS, NÓS QUE ESCOLHEMOS A SEGUNDA. E TE DIZEMOS:

DESSE JEITO TU NÃO MUDAS O MUNDO

DESSE JEITO AS COISAS FICARÃO SEMPRE COMO ESTÃO!

DESSE JEITO COMO TE CHAMARÁS, A TI, DE PROFESSOR?

DESSE JEITO, SEM LUTA, COMO DIRÁS A UM COLEGA, NO CORREDOR: “NÃO SEI COMO AGUENTO TUDO ISSO?

ESTÁ ACHANDO, PROFESSOR DO ESTADO, QUE FAZER GREVE A ESTA ALTURA É UM IRRESPONSABILIDADE? VÊ TEU CONTRACHEQUE. HÁ OUTROS PROFESSORES DO ESTADO QUE TÊM MAIS DE UM EMPRÉSTIMO NO BANRISUL. SÃO RESPONSÁVEIS, ESSES PROFESSORES, POR PAGAR ALUGUEL, PELA COMIDA, PELA ROUPA, SUA E DOS FILHOS, PELA ÁGUA QUE BEBEM, PELA LUZ QUE USAM PARA CORRIGIR PROVAS, PELO TRANSPORTE QUE O LEVAM ATÉ OUTRO TRANSPORTE QUE O LEVAM ATÉ A ESCOLA, PELO LAZER (LIVROS E CINEMA ENTRAM EM LAZER?)...

PENSA, PROFESSOR DO ESTADO, NÃO SÓ NOS TEUS PROJETOS PESSOAIS, MAS NO OUTRO, QUE DEVE PENSAR NO OUTRO, QUE TAMBÉM PENSA NO OUTRO, QUE SE COMOVE COM O OUTRO, QUE ESTENDE A MÃO AO OUTRO. A ISSO, PROFESSOR DO ESTADO, NÃO DAMOS O NOME DE UMBIGO, MAS DE HUMANIDADE!

Os professores do estado agradecemos!

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

O sorriso

Creio que foi o sorriso,
o sorriso foi quem abriu a porta.
Era um sorriso com muita luz
lá dentro, apetecia
entrar nele, tirar a roupa,
ficar nu dentro daquele sorriso.
Correr, navegar, morrer naquele sorriso.

Eugénio de Andrade

sábado, 15 de outubro de 2011

O leitor (mas também podia ser "A função da arte")

Num de seus contos, Soriano imaginou um jogo de futebol em alguma aldeia perdida da Patagônia. Ninguém tinha feito um gol contra o time local em seu campo. Tamanha ofensa era proibida, sob pena de forca ou de tremenda sova. No conto, o time visitante evitou a tentação o jogo inteiro; mas no finzinho o centroavante ficou sozinho na frente do goleiro e não teve outro remédio além de passar a bola pelo meio de suas pernas.

Dez anos depois, quando Soriano chegou ao aeroporto de Neuquén, um desconhecido amassou-o num abraço e levantou-o com mala e tudo:

– Gol, não! Golaço! – gritou. – Estou vendo você! Você festejou que nem Pelé!

Depois cobriu a cabeça:

– E que chuva de pedras! A sova que a gente levou!

Soriano, boquiaberto, escutava de mala na mão.

– Desabaram em cima de você! Eram uma cidade inteira – gritou o entusiasta. E apontando para ele com o polegar, informou aos curiosos que estavam se aproximando:

– Eu salvei a vida desse aí!

E contou a todos, com todos os detalhes, a tremenda briga que se armou depois do jogo: aquela partida que o autor tinha disputado na solidão, numa noite longínqua, sentado na frente de uma máquina de escrever, um cinzeiro cheio de guimbas e um par de gatos dorminhocos.

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Um homem doente faz a oração da manhã

Pelo sinal da Santa Cruz,
chegue até Vós meu ventre dilatado
e Vos comova, Senhor, meu mal sem cura.
Inauguro o dia, eu que a meu crédito explico
que passei em claro a treva da noite.
Escutei - e é quando às vezes descanso -
vozes de há mais de trinta anos.
Vi no meio da noite nesgas claríssimas de sol.
Minha mãe falou,
enxotei gatos lambendo
o prato da minha infância.
Livrai-me de lançar contra Vós
a tristeza do meu corpo
e seu apodrecimento cuidadoso.
Mas desabafo dizendo:
que irado amor Vós tendes.
Tem piedade de mim,
tem piedade de mim
pelo sinal da Vossa Cruz,
que faço na testa, na boca, no coração.
Da ponta dos pés à cabeça,
de palma à palma da mão.

Adélia Prado, do livro "Bagagem", ed. Civilização Brasileira

terça-feira, 20 de setembro de 2011

Às vezes com a pessoa a quem amo

Às vezes com a pessoa a quem amo
Fico cheio de raiva
Por medo de estar só eu dando amor
Sem ser retribuído;
Agora eu penso que não pode haver amor
Sem retribuição, que a paga é certa
De uma forma ou de outra.
(Amei certa pessoa ardentemente
e meu amor não foi correspondido,
mas foi daí que tirei estes cantos.)

Walt Whitman

sábado, 10 de setembro de 2011

Escolha de um amigo

Escolho meus amigos não pela pele ou outro arquétipo qualquer, mas pela pupila. Tem que ter brilho questionador e tonalidade inquietante. A mim não interessam os bons de espírito nem os maus de hábitos. Fico com aqueles que fazem de mim louco e santo. Deles não quero resposta, quero meu avesso. Que me tragam dúvidas e angústias e aguentem o que há de pior em mim. Para isso, só sendo louco. Quero os santos, para que não duvidem das diferenças e peçam perdão pelas injustiças. Escolho meus amigos pela alma lavada e pela cara exposta. Não quero só o ombro e o colo, quero também sua maior alegria. Amigo que não ri junto, não sabe sofrer junto. Meus amigos são todos assim: metade bobeira, metade seriedade. Não quero risos previsíveis, nem choros piedosos. Quero amigos sérios, daqueles que fazem da realidade sua fonte de aprendizagem, mas lutam para que a fantasia não desapareça. Não quero amigos adultos nem chatos. Quero-os metade infância e outra metade velhice! Crianças, para que não esqueçam o valor do vento no rosto; e velhos, para que nunca tenham pressa. Tenho amigos para saber quem eu sou. Pois os vendo loucos e santos, bobos e sérios, crianças e velhos, nunca me esquecerei de que "normalidade" é uma ilusão imbecil e estéril.

Oscar Wilde

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Natal em família


Meu pai contou-me esta história. Ela aconteceu no começo dos anos 20, em Seattle, antes do meu nascimento. Ele era o mais velho de seis irmãos e uma irmã, alguns dos quais haviam saído de casa.

As finanças da família estavam péssimas. O negócio do meu pai fora à falência, quase não havia empregos e o país estava perto de uma depressão. Naquele ano, tínhamos uma árvore de Natal, mas nada de presentes. Simplesmente não podíamos comprá-los. Na véspera do Natal, fomos dormir deprimidos.

Entretanto, quando acordamos na manhã do Natal, havia um monte inacreditável de presentes sob as árvores. Tentamos nos controlar no café-da-manhã, mas foi a refeição mais rápida de nossas vidas.

Então a diversão começou. Minha mãe foi a primeira. Ficamos em volta dela, na expectativa, e quando ela abriu seu pacote vimos que ganhara um velho xale que ela havia "posto em lugar errado" vários meses antes. Meu pai ganhou um machado velho, com o cabo quebrado. Minha irmã ganhou seus velhos chinelos. Um dos meninos ganhou uma calça remendada e amassada. Eu ganhei um chapéu, o mesmo que achava que havia deixado num restaurante um mês antes.

Cada coisa velha trouxe uma nova surpresa. Não demorou para que todos estivéssemos rindo tanto que mal conseguíamos abrir os pacotes. Mas de onde viera toda aquela generosidade? De meu irmão Morris. Durante meses, ele escondera coisas velhas, das quais sabia que não daríamos falta. Então, na véspera de Natal, depois que todos foram para a cama, ele embrulhara em silêncio os presentes e os pusera sob a árvore.

Foi um dos melhores Natais que tivemos.

Don Graves (do livro "Achei que meu pai fosse Deus", organizado por Paul Auster)

domingo, 3 de julho de 2011

Danço

Queres saber por que eu danço
danço porque vozes do passado
cantam para mim
e então respondo.
Danço porque sou Kikongo,
Kimbundo, Baluba...
Danço para que a poeira
que assenta em meu corpo
seja somente do ato de dançar.
Danço para libertar minha africanidade.
Danço porque o vento dança,
as flores, os bichos,
e esta é minha forma
de integração.
Danço para que lanças-de-desrespeito
não me atinjam, mas sobretudo danço
porque vozes do passado cantam
e eu respondo.

Por Jorge Fróes

quarta-feira, 29 de junho de 2011

Para ler de manhã e à noite


Aquele que amo
disse-me
que precisa de mim.

Por isso
cuido de mim
olho meu caminho
e receio ser morta
por uma só gota de chuva.

Bertolt Brecht - Poemas 1913 - 1956
Van Gohg

Uma noite


O quarto era pobre e vulgar,
oculto no alto da taverna suspeita,
da janela via-se a ruela,
suja e estreita. De baixo
vinham as vozes de alguns operários
que jogavam cartas e que se divertiam.

E ali, na cama rústica e humilde,
possuí o corpo do amor, possuí os lábios
voluptuosos e róseos da embriaguez -
róseos de uma tal embriaguez que, mesmo agora
quando escrevo, depois de tantos anos!,
em minha casa solitária, novamente me embriago.

Konstantinos Kaváfis

sexta-feira, 10 de junho de 2011

Fundo

Não conheces o melhor de mim.
O melhor de mim está submerso
por camadas de cimento, oculto,
ganhando fôlego, sendo feito. Aqui,
é só uma fatia de bolo, gota, nesga
a nutrir-se, a exercitar a sensibilidade.
Muito falta, mas sei que o ensino
do espírito, simples, nunca foi,
e que por fim, talvez, que nem tu,
eu pereça e morra não conhecendo
o melhor de mim - de tão fundo que sou.

Por hora, é tudo o que à tona posso
trazer: o que te dou é o melhor de mim.

Por Jorge Fróes

Exercício

Às vezes me despeço das coisas que tenho.

Um exercício para o dia
quando as coisas faltarem comigo.

Um exercício para o dia
quando eu faltar com as coisas.

Deve ser por isso que não sinto saudades,
minha despedida é sempre antes.

Este é o meu jeito de reverenciá-las.

Por Jorge Fróes

quarta-feira, 4 de maio de 2011

Mediocridade

No infinito coberto de eternas belezas,
Como átomo perdido, incerto, solitário,
Um planeta chamado Terra, dias contados,
Voa com os seus vermes sobre as profundezas.

Filhos sem cor, febris, ao jugo do trabalho,
Marchando, indiferentes ao grande mistério,
E quando um dos seus é enterrado, já sérios,
Saudam-no. Do torpor não são arrancados.

Viver, morrer, sem desconfiar da história
Do globo, sua miséria em eterna glória,
Sua agonia futura, o sol moribundo.

Vertigens de universo, todo o céu só festa!
Nada, nada, terão visto. Partem do mundo
Sem visitar sequer o seu próprio planeta.

Jules Laforgue, do livro Litanias da Lua, tradução de Régis Bonvicino

sexta-feira, 22 de abril de 2011

Por que sou um perdedor

Bem, é que torço pelo touro. Todo o espetáculo, toda a estrutura é para que o toureiro vença, mesmo assim, eu torço pelo touro. É mais justo, e não há o mínimo espanto, quando algumas vezes, talvez pelo excesso de confiança do toureiro, de que nunca vai perder, o touro o ergue.

Quando falo de espanto, é facial, a cara que um homem faz ao acertarem o saco de outro homem, acontece aí uma solidariedade masculina. Quando o touro ergue o toureiro, se dá uma solidariedade tipicamente humana, como se o touro, também os atingisse. Espanto. Dor. Eu não os tenho, ao contrário, o que sinto é um comprazimento e o sentimento de que a justiça foi feita.

O touro, mesmo que momentaneamente ganhou uma. Reagiu. Isso é um direito do touro e de qualquer um que seja oprimido. Viva o touro (que sem ter lido Marx), levanta o toureiro, desmanchando no ar a sua solidez.

Por Jorge Fróes